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deixar morrer ou fazer viver…

Há pouco mais de 15 dias minha cachorrinha, a Sofia, começou a fazer xixi com sangue. Foi aquele susto, claro! Sofia não é de saúde muito forte, sabe? Desde muito nova ela apresenta vários quadros de doenças bizarras e graves.

Começou quando ela tinha uns 2 ou 3 anos, não lembro bem. A bichinha começou a fazer cocô com sangue, desidratar e quase morreu. Resultou que ela teve uma hemorragia intestinal de causa desconhecida. Algum problema com a alimentação, algo como não absorver bem os nutrientes. Chegou a ter um outro episódio desses, mais fraco, um ano mais tarde. Mas desde que começou a comer ração moída com frango e arroz, engordou um pouco (sempre foi bem magrela) e ficou bem.

Há 2 anos, Sofia acordou arrastando as patinhas traseiras. Estava paralítica. Corremos com ela pro veterinário e descobrimos que ela tem uma hérnia na coluna que, sei lá por qual razão, fez com que ela parasse de andar. Tratamento? Corticoide e acupuntura. Muitas sessões de acupuntura regadas a muito choro por ter que deixá-la presa, já que não podia forçar a coluna. Voltou a andar. Hoje manca um pouquinho, puxando a patinha direita, mas se não se é um bom observador, ninguém diz que ela já ficou paralítica.

E então voltamos à data de pouco mais de 15 dias atrás, quando ela acordou urinando sangue. De início, pensamos numa cistite aguda, algo que antibióticos e muita água resolveriam. Ela não chorava de dor, não me preocupei muito. Então o veterinário pede para fazer um ultrassom, porque quadros assim em cães muitas vezes significam pedra no rim ou na bexiga. Certo, vamos lá então. Estica a barriga, vira a bichinha de costas pra poder passar o gelzinho na barriguinha, a veterinária responsável encontra uma ferida na mama. Uma dermatite, talvez. “Peça pro veterinário dela dar uma olhada”.

Ultrassom e raio-x na mão, uma imagem que parecia uma pedra do tamanho de um sonho de valsa e um prognóstico pra mama: “Passe essa pomada. Se não melhorar em 3 dias, pode ser câncer.” Oi? Câncer? Ignorei. Resolvi focar no problema da bexiga, afinal ela teria que fazer uma cirurgia com anestesia geral, abrir a barriga, tirar uma pedra do tamanho de um bombom (Sofia é uma salsichinha, ela é bem pequena, por isso uma pedra do tamanho de um bombom é algo proporcionalmente absurdo). Pedra do tamanho de um bombom que resultou na verdade em 3 pedras menores, iguais a essas brancas de jardim. Impressionante.

Mas mais sério foi, no meio da cirurgia, o veterinário me ligar: “Mariana, a mama dela está bem estranha. Podemos tirar?” Isso é pergunta que se faça? Óbvio que sim! (Ok, acho que muitos “donos” não autorizariam tão facilmente…) Pronto, a pulga atrás da orelha ali se instalou. Foram 15 dias de recuperação, 2 curativos por dia e antibióticos, pensando no assunto: “Será que esse tumor é maligno ou benigno?”

Pois bem, hoje recebi a notícia de que Sofia está com câncer de mama e que é grave, estágio avançado. E daí, acompanhadas de muito choro, me vêm um monte de questões em relação a isso. Pra além da relação de afeto que a gente constroi com esses bichos, hoje vivemos num mundo em que os direitos dos animais praticamente se sobrepõem aos direitos humanos, pelo menos por parte de alguns grupos sociais. Ok, não vou entrar no mérito da validade disso. Não sou ativista dos direitos animais, como carne sem piedade e acho muita coisa um monte de ladainha. Mas vamos pensar naquilo que Foucault chama de “direito de morte e poder sobre a vida”, ou no poder que o soberano tinha de “fazer morrer e deixar viver”, lá no volume 1 do História da Sexualidade – A Vontade de Saber. Não vou explicar o que isso é. Se você tiver interesse, procure o livro aqui ou aqui.

É que como tenho lido esse livro recentemente, fiquei me perguntando em relação a essa história da Sofia qual é o direito que eu tenho de decidir sobre o rumo que o tratamento dela deve tomar. Se o câncer fosse em mim, eu, enquanto ser dotado de Razão, teria o direito, no limite, de escolher se quero ou não seguir um tratamento quimioterápico para me curar (isso, é claro, sem considerar que talvez o Estado me considerasse suicida, e daí isso implica um monte de outras questões). Mas a partir do momento em que a cadelinha de quem eu cuido tem essa doença, sou eu quem deve tomar essa decisão por ela, já que ela não tem a Razão necessária para isso. Pensando “racionalmente”, é claro que eu tenho que tratá-la, não é isso? Ela tem o direito de viver, ela é um ser vivo. Mas que direito tenho eu de tirá-la da rotina dela, levá-la para uma clínica impessoal, cheia de veterinários e agulhas, enfiar um monte de química no corpo dela, fazê-la passar por um monte de efeitos colaterais horríveis como vômitos e diarreias, sendo que agora, hoje, ela está ótima, brincando, aprontando como sempre aprontou, enfim, está na santa paz da vidinha de cachorrinha doméstica? Ela não pode virar e me dizer: “Ei, esquece. Me deixa viver meus últimos dias em paz, na minha casa. Quimioterapia é invenção de vocês, seres humanos. Me deixa aqui no meu canto de cachorro” ou “Por favor, me leve sim ao veterinário, vocês humanos são incrivelmente avançados, podem me salvar. Eu quero viver mais”.

Então fico eu, com esse poder soberano invertido da modernidade que me foi dado sem que eu pedisse, no dilema de decidir se “deixo morrer ou se faço viver”. Conviver com a culpa de não tê-la tratado e deixá-la morrer mais cedo, definhando nos últimos dias? Investir num tratamento que pode como não pode dar certo, e fazê-la sofrer com os efeitos da quimio? Eu juro que não sei o que fazer.

Hoje está sendo um dos dias mais duros da minha vida. A única coisa de que tenho certeza hoje é de que, pelo menos por um longo período de tempo depois que a Sofia morrer (semana que vem ou daqui a 5 anos, vai saber), não quero saber de ter um bicho de estimação sobre o qual terei esse poder soberano horrível. Não quero ter que decidir por nenhum bicho o direito dele de viver ou não, aplicar um direito a priori humano sobre um animal.

E sobretudo não quero sofrer outra vez o que estou sofrendo com a ideia de perder essa cachorrinha que amo tanto.