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Não é liberdade de expressão, nem argumento. É despeito.

Tão logo a notícia do câncer de Lula veio à tona, as manifestações em relação à sua doença começaram a pipocar pela Internet. Não sou muito assídua no twitter, não sei o que tá rolando por lá, mas infelizmente, no meu feed do facebook, logo vi piadinhas grotescas sobre o Lula e o “pedido” a ele para usar o Sistema Único de Saúde, o SUS.

Na mesma hora bloqueei quem se (in)dignou a postar tamanha estapafúrdia. Recuso-me a ler qualquer outra coisa que alguém que faz piada com a desgraça alheia tem a dizer. Esta não merece o meu tempo, nem o meu respeito.

Felizmente, a maioria das pessoas que sigo no facebook é gente bacana, de boas opiniões, de bom senso. As manifestações contra a esse tipo de piada foram várias, e isso me deixou mais aliviada. Aliviada por saber que ao meu redor estão pessoas com quem consigo conversar, que não são toscas, que respeitam o próximo.

Mas ao mesmo tempo, estou bastante triste e revoltada com esse tipo de situação. A gente tá vivendo uma onda pela “liberdade de expressão” em que os limites, muito tênues, entre falta de respeito e liberdade de dizer o que se pensa, estão sendo o tempo todo ultrapassados. Vide recentes casos de Rafinha Bastos, Danilo Gentilli e toda a trupe do CQC.

Outro dia, conversando com a minha orientadora, falávamos sobre essa onda de piadas de mau gosto. E ela disse uma coisa muito certa: a piada desrespeitosa aparece quando a pessoa não tem mais argumentos para defender seu ponto de vista. Ela não sabe dizer por que não gosta de uma coisa ou de alguém, e parte para a baixaria. E o caso do câncer de Lula é o exemplo mais evidente disso.

Mandar o Lula se tratar pelo SUS não só é uma tremenda ignorância em relação ao que é esse sistema de saúde respeitado no mundo inteiro (e com isso eu não digo que não haja muitos problemas), como é uma manifestação classista enojante. As mesmas pessoas que mandam o Lula se tratar pelo SUS não conhecem um hospital público de perto e vangloriam os Estados Unidos como o país modelo a ser seguido. Só não sabem, é claro, que o sistema de saúde americano é talvez o mais desumano do mundo, em que um paciente que não paga o seguro saúde simplesmente não é atendido em nenhum hospital, e ponto final. Talvez se realizassem o sonho da emigração, entendessem na pele o que é ser pobre num país que caga e anda pra sua saúde, como os EUA.

A piada com o câncer de Lula é, portanto, somente mais uma manifestação de despeito. Lula é de origem pobre. Lula é nordestino. Lula é “analfabeto”. Lula não tem curso superior. Lula não fala inglês. Mas Lula governou o Brasil por 8 anos e deu à classe C acesso a coisas que só a classe B e A possuíam. A classe C comprou carro. A classe C comprou casa. Lula acendeu nessa classe média-alta emergente (especialmente a paulista) um medo (à la Regina Duarte) do contato com gente pobre. Como assim um homem do povo se torna presidente e dá a outras pessoas do povo as mesmas oportunidades que um “cidadão de bem” (e medo tenho eu dessa gente), que paga seus impostos e que come queijo brie no final de semana? Como assim o celular da minha empregada é melhor do que o meu? Como assim o pedreiro que de vez em quando me presta serviço trocou de carro e eu ainda não?

Talvez essas pessoas não digam tudo isso abertamente, talvez elas nem tenham tanta consciência disso. Mas toda vez que eu pergunto “Por que você não gosta do Lula?”, só o que eu escuto é: “Ah, ele é analfabeto”, “Ele não sabe nem falar inglês”, “Ele não fala direito”, “Ah, sei lá, não gosto e ponto.” Isso não é argumento, isso é despeito. Fale sobre uma política pública da qual você discorda (e mesmo quando falam, é sempre sobre o Bolsa Família, que criou um monte de vagabundos que não querem trabalhar…” – mais uma vez, não é argumento), fale sobre uma medida tomada que prejudicou o país, fale sobre a aprovação da construção da usina de Belo Monte, sobre o incentivo à soja na Amazônia, sobre o aumento da dívida interna, sobre a condescendência à corrupção, fale sobre tudo isso, e daí podemos conversar. Mas não me diga que ele é analfabeto. Analfabeto é o Tiririca. E você, paulista, que sempre elege o José Serra e o Geraldo Alckmin, você que elegeu o Tiririca, diga-me onde está a contradição.